quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Ontem, BO. Hoje, Poupatempo.

- Demorou no Poupatempo, hein!?

- As coisas saíram do controle. Mas dessa vez a culpa não foi minha.

- Peraí, deixa eu pegar um café e sentar antes de você contar. 

- Pega um pra mim. Sem açúcar. Quero tirar o gosto de crack da boca.

- Crack? Bom, pega. Conte-me.

- Eu odeio gente que vai a filas com idosos e crianças só para poder passar na frente.

- Ah, eu também. Como se os idosos não pudessem ficar sozinhos ou trancados em casa. Se chegaram a tal idade avançada, é porque sabem se cuidar muito bem. Ou, na pior das hipóteses, sabem se cuidar mal, mas dá para o gasto e sobrevivem.

- É o que acho. Quanto às crianças de colo, até minho avó sabe que o ideal seria trancá-las no carro, dormindo, enquanto os pais vão ao banco e demais serviços burocráticos.

- Exato. E, obviamente, se elas não quiserem dormir, basta dar um pouco de sonífero ou mandar cheirarem éter. É tiro e queda.

- Claro que elas poderiam morrer dentro do carro.

- Que tipo de pai deixaria uma criança morrer enquanto está na fila do Poupatempo? Por Deus! Se essa pessoa preferir a fila ao filho, merece... merece... sei lá, merece ficar em último na fila para sempre. No mínimo. 

- Não entendi a lógica.

- Não importa. Me diga, quando foi que as coisas saíram do controle?

- Bom, entrei no Poupatempo e a fila para fazer a nova identidade estava enorme.

- O RG, você quer dizer?

- Que seja. O fato é que, com pressa, eu tive uma idéia que considerei brilhante. Sai do Poupatempo e fui procurar alguém que me ajudasse a furar fila. 

- Você foi procurar um idoso de aluguel?

- Isso. Mas como é um serviço qualificado e tem de ser agendado com antecedência, resolvi me virar com o que tinha nas mãos. No caso, com um mendigo que aparentava ter uns 60 anos, deitado na calçada, na esquina do Poupatempo.

- E ele topou?

- Eu ofereci R$ 5 para ele me fazer companhia na fila. Ele aceitou e esticou o braço. Nem se levantou. Eu devia ter desconfiado, mas fui inocente. Depois que dei os R$ 5, ele botou no bolso do paletó, se virou para o outro lado e continuou dormindo. 

- Obviamente, você não deixou barato.

- Não. Tentei levantá-lo à força, mas foi inútil. Para um mendigo idoso, ele estava muito bem alimentado. Acho que o que mais pesava mesmo era a hérnia que saía pela calça puída. Quando desisti de levantá-lo, resolvi, pelo menos, reaver minha grana.

- Você assaltou um mendigo?

- Não, claro que não. O contrato era de prestação de serviço, o qual ele não prestou. A não ser que ele ache que eu paguei R$ 5 para ele mudar de posição na calçada e continuar dormindo. 

- Sei.

- Bom, aí me abaixei e comecei a fuçar no bolso dele. Nessa hora, apareceu uma senhora histérica que gritava "tão assaltando um mendigo!" e coisas assim.

- E você apagou a velha?

- Hahahaha. Nem pensei nisso. Sai correndo antes que a multidão se juntasse. Eu e os R$ 10 que peguei do bolso do mendigo.

- Não eram R$ 5?

- Eu enfiei a mão no bolso dele e saiu uma nota de R$ 10. Achei de bom grado e me mandei.

- Você realmente roubou um mendigo.

- Eu considero que fui ressarcido pelo serviço não prestado pelo imprestável. 

- Pois bem, prossiga.

- Daí eu corri, corri e corri. Fiquei dentro de uma lixeira hospitalar por horas. Quando achei que já era seguro o suficiente voltar ao Poupatempo, resolvi sair.

- Sei.

- Daí qual não é a minha surpresa quando saio da lixeira e dou de cara com um menor de rua. Bem definhado, muito mesmo. Parecia que tinha uns 3 ou 4 anos, embora eu tenha ficado sabendo que ele tem, na verdade, 15. Daí tive outra ideia que considerei brilhante.

- Pagar o garoto para se passar por seu filho. Correto?

- Primeiro eu nã0 queria pagar, mas ele bateu o pé. Fechamos o negócio por duas pedras de crack, que ele me indicou onde eu poderia comprar. 

- E é por isso que você tá com gosto de crack na boca? 

- Não estou mais. Esse café horrível apagou o gosto. De toda forma, eu só fumei o crack, e pouco, horas depois, no banheiro da delegacia, para me acalmar.

- Que eu saiba, crack não acalma.

- Não importa. O fato é que o moleque topou e logo depois eu entrava no Poupatempo com o garoto no meu colo. Peguei a fila preferencial para fazer a identidade. Estou lá, tranquilo, quando a mesma senhora que deu o alerta do mendigo grita, duas pessoas na minha frente, "mas que moleque fedorento! você não dá banho no seu filho, não".

- Imagino que ele estava cheirando melhor do que você, que dormiu em uma lixeira.

- Não sei quem fedia mais. Mas não me segurei. Comecei a bater boca com a velha. Não admito que falem assim do meu filho.

- Ele não era seu filho.

- Eu sei. Você sabe. A velha não sabia.

- Seu instinto materno é levado aos últimos limites, hein.

- Pois é. Sei que coloquei o moleque no chão e avancei pra velha, gritando. Ela me reconheceu do caso do mendigo e começou a me chamar de ladrão de sem teto. E a me dar guarda-chuvadas. Eu a chamei de todos os palavrões que lembrei até a letra O. Daí chegou a turma do deixa disso e a coisa foi se acalmando. 

- E a sua vez não chegava nunca nessa fila?

- Para você ver como demora o Poupatempo. Sei que quando estava tudo quase bem, já, depois de uns cinco minutos de conversa, o garoto, que devia estar entediado com aquela paz, acendeu o cachimbo de crack.

- Se já é proibido fumar tabaco em ambientes fechados, imagino o que não aconteceu com o garoto. Deve ter sido esquartejado pelo Serra.

- Quando a velha viu aquilo, aí ficou louca e começou a dizer que eu roubava de mendigos para pagar o vício do meu filho.

- E você, com seu instinto materno, se defendeu.

- Claro. Você acha que eu vou mimar meus filhos? Disse que ele tinha conseguido o crack com dinheiro honesto e tudo mais. E que filho meu jamais seria mimado, e isso, e aquilo. E que ela não era ninguém para querer me ensinar a criar meus filhos já que eu havia tido oito.

- Mas você não tem nenhum.

- Eu sei. Você sabe. Mas ela não sabia. E ainda disse que, para ela ter uma idéia, eu era pai do Kaká e do Caio Ribeiro, notoriamente dois dos mais bom moços do Brasil.

- E o que ela disse?

- Acho que nem ouviu, porque nessa hora chegou a Guarda Municipal, mais uns policiais, e toca todo mundo para a delegacia. Eu, ela, o garoto. Dentro da viatura, ainda encontrei o mendigo, a quem eu fiz me devolver meus R$ 5.

- Você roubou de novo o mendigo?

- Se ele tava sendo preso, é ladrão. Ladrão que rouba ladrão, 100 anos de perdão, manja?

- Manjo, manjo.

- Bom, chegando à delegacia, pediram documentos e o diabo. Coisa que, obviamente, eu não tinha. Depois de muita embromação, toca eu de volta para o Poupatempo, para fazer o RG, etc. Dessa vez, furei fila direto. Os policiais me acompanharam. Voltei para a delegacia com o RG novo. A velha e o garoto já tinham sido liberados. Fiquei um pouco magoado pelo fato de meu filho ir embora sem se despedir, confesso.

- Entendo.

- Bom, daí me ficharam por vadiagem, não sei o que da ordem pública e outras coisas lá e me liberaram. Agora, estou aqui.

- Moral da história: o crime não compensa.

- Nada. Claro que compensa. Da próxima vez que eu precisar fazer um RG novo, em vez de contratar mendigos ou viciados, vou logo roubar algum toca-fitas de carro e esperar a polícia chegar.

4 comentários:

Anônimo disse...

Nossa, essa saga dá um curta.

Flávia D'Álima disse...

Nossa, essa saga dá um curta...

Lu disse...

Muito legal....como sempre.
Beijo
Lu

Li Lee disse...

Como não trabalho mais no Poupatempo há 2 anos, tenho tempo pra ler essas coisas. Adorei! Vou mandar o link para meus amigos que ainda estão sofrendo lá. Sensacional mesmo!!!