quarta-feira, 23 de março de 2011

Navegar é Preciso, Roubar não é Preciso

- Quem era esse?

- Esse quem?

- Esse cara que você ficou conversando por uns dez minutos. Que acabou de sair daqui e que tava com uma meia calça na cabeça e que tinha uma tatuagem dizendo "tudo o que aprendi foi no xilindró" no braço direito.

- Ah, é um camarada meu.

- Para você ver como são as coisas. Na hora em que ele veio em nossa direção, achei que ia ser assalto. Mas aí ele ficou falando com você sobre Fernando Pessoa e Alberto Caeiro e tive que refazer todos meus conceitos. Afinal, quem diabos é esse cidadão?

- O conheci outro dia, no ponto de ônibus. Ele veio me assaltar e a gente ficou conversando.

- Você ficou amigo do ladrão?

- Mais ou menos. Ele queria levar minha mochila. Mas justamente nesse dia, eu estava com meu notebook e, nele, mais de duas semanas de trabalho. Se fosse pelo notebook, só, poderia levar. Mas sabe que eu odeio refação, né?

- Sei.

- Aí tive que pensar rápido, para que ele não levasse. Aí inventei uma história qualquer.

- Não foi um "pelamordedeus, tem duas semanas de trabalho aí. Odeio refação!"?

- Não. Achei que não ia colar e que ele não ia se sensibilizar.

- Certo. E então?

- Então, eu disse a ele que não poderia ceder a mochila porque nela estavam os restos mortais de meu pai, Alberto Caeiro. E que eu os estava levando para jogar no mar, onde ele sempre quis ser jogado.

- Você sabe que Alberto Caeiro era um heterônimo do Fernando Pessoa, certo?

- Eu sei. Mas na hora não lembrei. Achei que tivesse inventado um nome qualquer. Queria só sensibilizar o ladrão.

- E?

- E ele disse que, nesse caso, não iria levar.

- Ele acreditou que seu pai estava na mochila?

- Ele se disse grande fã de Fernando Pessoa e que, por isso, respeitaria que eu levasse os restos mortais do heterônimo dele onde ele havia pedido.

- Como é?

- Então, pelo que percebi, conversando mais a fundo, é que ele realmente é fã do Fernando Pessoa. Mas que não tem a menor ideia do que seja um heterônimo. Graças a isso, me safei.

- Você encontrou um ladrão culto e burro?

- Acho que sim. Mesmo porque quando nos despedimos, ele ainda mandou um "manda um abraço para o Ricardo Reis e dá uns pescotapa no Alvaro de Campos, hein!".

- Será que ele não confundiu o Fernando Pessoa poeta com o Fernando Pessoa puxador de carro do Taboão?

- Acho que não. Mesmo porque, como você viu, ele recita várias coisas do Pessoa e do Caeiro, a quem ele se refere, desde então, como "meu finado pai".

- Você não vai esclarecer a situação.

- Estou quase fazendo isso. Mesmo porque, agora, sempre que ele me encontra, vem falar da porra do Fernando Pessoa. Não aguento mais. Acho que não vale um notebook. E eu já fiz o back up das duas semanas de trabalho, de qualquer forma.

- Cara, mas você ia acabar com um sonho. Ele acha que conhece o filho do Caeiro, o qual nem existe.

- Pensei em dar um dicionário a ele também. Aproveitaria e grifaria o termo heterônimo. Quando ele chegasse no agá, descobriria sozinho e eu não acabaria com nada. Só o induziria à informação.

- Bruto.

- Não é você que tem que aguentar ligações às 3 da manhã com um meliante dizendo que navegar é preciso, viver não é preciso.

- Vocês trocaram celular?

- Mais ou menos. Como ele não queria sair de mãos abanando, levou o meu. Viu meu telefone de casa e fica me ligando no fixo.

- Que história bonita.

- Agora melhorou, pelo menos. No começo, ele ligava e desligava. Depois, começou a respirar no telefone. Agora, pelo menos, fala umas poesias do Pessoa. É menos pior do que antes, mas é chato. Ainda mais de madrugada.

- E ele nunca te perguntou o que você fez com os restos mortais do seu pai?

- Perguntou. Disse que tinha jogado na Billings.

- Ué, e a Billings agora virou mar?

- Ele nem sabe que o é heterônimo, você lá acha que ele sabe a diferença entre mar e represa?

- Pelo jeito não sabe.

- Não sabe. Aliás, não sabe nada. Outro dia fiquei meia hora no telefone explicando a ele o que é papel almaço.

- Ele não sabe o que é almaço?

- Sabe nada. Acho que a única coisa que ele sabe é a poesia do Pessoa. E olhe lá.

terça-feira, 22 de março de 2011

Fogo na Bomba ou Algo do Tipo

- Que mundo é esse em que as pessoas roubam aparelhos de medir pressão à luz do dia?

- Como?

- Acabo de ver uma mulher que roubou um aparelho de medir pressão.

- Olha, essa é uma dúvida que sempre tive. Como chama isso?

- Crime.

- Não, não o roubo. O aparelho de medir pressão. Qual é o nome disso?

- Eu chamo de aparelho de medir pressão. E acho que todo mundo chama de aparelho de medir pressão. Mas você pode chamar do que quiser. Caneta, panela, sabonete, vesícula. Ele não vai atender mesmo. 

- Ô, idiota, queria saber se tem algum termo técnico para ele.

- Tem. É "aparelho de medir pressão".

- Já vi que empacamos nessa conversa. 

- Por falar em empacar, outro dia vi uma vaca móvel solta no meio da Anchieta. Que perigo, não?

- O que é uma vaca móvel?

- É um bicho que muge e dá leite. 

- Eu sei o que é uma vaca. Não entendi o móvel. 

- Ah, é móvel porque ela estava andando de um lado para o outro na Anchieta. 

- Não podia simplesmente falar vaca?

- Poderia. Mas aí pairaria no ar a dúvida se ela era móvel ou estática. Quis ser específico, não gosto de discursos dúbios.

- Mas gosta de discursos débeis.

- Não vem com ofensa. Eu já estou todo assustado e você me vem com desdém...

- Assustado por...

- Porque vi uma mulher que roubou um aparelho de pressão à luz do dia. 

- Como foi isso?

- Estava vindo para cá e cruzei com uma mulher com o aparelho de pressão preso no braço. Ela andava calmamente. Achei que ela ou alguma enfermeira tivesse esquecido de tirar e fui avisar.

- E ela?

- Ela disse "ah, não foi esquecimento. Eu roubei ali daquela clínica. Como não cabia na bolsa, resolvi colocar no braço e sair assobiando".

- Que ladra! 

- E era uma ladra móvel. Andava apressada como ninguém.

- Ela andava com pressa? Ou com pressão?

- Ai, ai. Vou ali tomar um copo d´água para me acalmar.

- Nervoso por conta do roubo?

- Não, essas suas piadinhas que me tiram do sério.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Crack, Uma Epifania. Ou Epidemia, Como Queiram.

- Mas que porra é essa?

- Ah, minha sobrancelha? Passei na frente de um cabeleireiro, vi que estava rolando uma promoção de aparar a sobrancelha por R$ 3 e investi. Gostou?

- Não, não. Isso aí, que porra é essa?

- O que?

- Por que diabos você está todo sujo, enrolado em um cobertor imundo, com chinelo de dedo e uma... uma.. isso é uma tanga frouxa, quase caindo?

- Ah, isso? Quis vim trabalhar fantasiado de viciado em crack. Curtiu?

- Mano... isso não tem graça.

- Também acho. Depois da terceira pedra, perdeu o sentido mesmo.

- Você veio para cá fumando?

- Só no começo. Depois ficou difícil fumar, segurar a bermuda, controlar o cobertor imundo e ainda fugir da polícia. Aí, parei de fumar.

- Por que, em nome de Deus, você resolveu vir fantasiado de viciado em crack?

- Carnaval, ué.

- Olha, o carnaval acabou há, pelo menos, uma semana.

- Sério?

- Bom, na Bahia ainda deve estar rolando. Mas aqui já acabou.

- Então estou atrasado. De qualquer forma, fico até que feliz que acabou.

- Por que? Agora já pode tomar banho e se livrar do cobertor?

- Não posso me livrar do cobertor, afinal, como te disse, foi muito difícil segurar a bermuda. E essa tanga tá frouxa.

- Então por que você dá graças a Deus de ter acabado do carnaval?

- Já tinha planejado a fantasia de amanhã. Ia ser doída.

- Pior que essa? Vinha de que?

- Mário Gomes.

- Nossa, ia precisar fumar muito crack para aguentar.

- Provavelmente, ia precisar fumar um viciado em crack. Ou comer uma pasta de crackelina.

- Comer?

- Na melhor das hipóteses.